O número de novos casos de hanseníase no Brasil teve uma queda significativa nos últimos dois anos, mas essa não é uma boa notícia. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e a Fiocruz, a redução de até 45% nos registros, depois de décadas de estabilidade, indica que muitos diagnósticos deixaram de ser feitos. O motivo é a pandemia de covid-19.
Em 2019, o Brasil registrou 27,8 mil notificações de novos casos de hanseníase. Foi um número compatível com a média histórica de aproximadamente 30 mil novos casos por ano. Em 2020, primeiro ano da pandemia, porém, o dado caiu para 17,9 mil. Teve redução de 35%. Em 2021, o recuo foi ainda maior. Foram identificados 15,1 mil novos casos, 45% a menos do que no período pré-pandêmico.
Para especialistas, os números sugerem que muitos casos de hanseníase deixaram de ser diagnosticados. Pessoas infectadas, mas sem tratamento, correm o risco de transmitir a doença para mais gente. Também apresentam maior chance de desenvolver sequelas permanentes da doença.
“Ao contrário do que poderia parecer, o fato das estatísticas indicarem uma queda acentuada no número de novos casos em 2020 e 2021 não indica que o Brasil está avançando na luta contra a hanseníase. Infelizmente, a realidade é bem diferente”, afirma o vice-presidente da SBD, Heitor de Sá Gonçalves. “Isso indica que há grande subnotificação no País; nos preocupa muito a possibilidade de que mais pessoas estejam sendo afetadas e que outras tantas, mesmo depois de curadas, não tenham acesso às assistências médica e fisioterápica continuadas para o tratamento das sequelas da doença.”
Embora exista tratamento para a doença há décadas, o Brasil segue como o segundo País do mundo em número de casos, atrás apenas da Índia. Especialistas temem uma piora no quadro por causa do “apagão” de novos diagnósticos.
Professora de dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Departamento de Hanseníase da SBD, Sandra Durães lembra que a pandemia gerou dois fenômenos que contribuíram para a queda no volume de notificações. “Em primeiro lugar, houve mudança no fluxo de funcionamento dos serviços de saúde, que reduziram sua rotina de atendimento e passaram a dar prioridade aos casos de coronavírus”, afirmou a especialista. Ela lembrou ainda que teve grande número de profissionais de saúde doentes. “Em segundo lugar, a população, mesmo com sinais e sintomas de adoecimento, evitou a busca de ajuda médica, com medo de estar em ambientes onde supõe que o risco de contágio pela covid-19 é maior.”
DIAGNÓSTICO
A hanseníase é uma doença infecciosa crônica causada pela bactéria Mycobacterium leprae. Ela é transmissível por gotículas de saliva, quando uma pessoa contaminada tosse ou espirra muito próximo de outras. A doença é caracterizada pela redução da sensibilidade principalmente em mãos, braços, pés, pernas e olhos. Nos casos mais graves, ela afeta o tecido nervoso, podendo gerar incapacidades permanentes.
O diagnóstico é essencialmente clínico. Os testes existentes são complexos, realizados apenas em centros de referência. O tratamento está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), mas envolve diferentes antibióticos. E é longo: leva de seis meses a um ano.
Conhecida no passado como lepra, a hanseníase sempre carregou um grande estigma, sobretudo, pelas deformidades físicas presentes nos casos mais graves. Antes de surgirem os primeiros tratamentos, o que só aconteceu na década de 1940, os doentes eram isolados da sociedade e da família. Ficavam em leprosários, abandonados para morrer sozinhos. Até hoje, é considerada uma doença negligenciada. Há pouco investimento em treinamento de profissionais de saúde e em novas drogas.
Segundo o chefe do Laboratório de Hanseníase da Fiocruz, Milton Ozório Moraes, a dificuldade para reduzir o número de casos no Brasil está relacionada ao fato de ser uma doença de diagnóstico difícil, tratamento longo, e, sobretudo, pela profunda desigualdade econômica e social do País.
“A hanseníase é uma doença associada à pobreza, assim como tuberculose, leishmaniose e esquistossomose”, explicou Moraes. “A incidência está associada à qualidade de vida, salário, infraestrutura, falta de água encanada, esgotamento sanitário.” Mato Grosso, Maranhão, Pará, Sudeste da Bahia e Nordeste de Minas, sobretudo nos bolsões de pobreza, são as regiões que concentram o maior número de doentes.
CASOS
Em 2015, sentindo muitas dores, com uma mancha branca no corpo e depois de vários diagnósticos errados em consultórios particulares, o padeiro João Victor Pacheco Fos Kersul de Carvalho, 27 anos, descobriu numa consulta pelo SUS que estava infectado pela hanseníase. “Foi um choque muito grande, mas segui a recomendação médica, recebi alta em 2016, e fui reinfectado em 2020, em plena pandemia”, contou ele.
Ele acabou o tratamento da reinfecção, mas sofre com as sequelas da doença. “Ainda tenho muitas dores, não consigo trabalhar e não consegui receber auxílio do INSS, mesmo com laudo do exame de eletroneuromiografia realizado pelo Instituto Lauro Sousa Lima, em Bauru”, conta. Questionado pelo Estadão, o INSS não se posicionou sobre o caso de João Victor.
Já Judith Lemes de Arruda foi diagnosticada em 2019, ao ser atendida em um “postinho” do bairro onde mora, com hanseníase. Fez o tratamento medicamentoso durante todo o ano de 2020. A médica deu alta, mas ela não estava curada. “As dores continuavam, inchava minhas pernas, cansava muito e, para completar, a covid me pegou.” Em janeiro de 2021 tentou consulta com um dermatologista-hanseníase, mas não conseguiu. Só teve atendimento graças a um amigo que conhecia uma médica especializada na doença. “Ele faz parte do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), núcleo Cuiabá. Consegui ser atendida no segundo semestre de 2021”. Judith recebe auxílio-doença do INSS.
TESTES
Em nota oficial, o Ministério da Saúde confirmou que houve uma redução de 35% no número de diagnósticos de hanseníase em 2020 em relação a 2019 no País. O ministério lembrou ainda que está incorporando ao SUS três testes complementares de diagnóstico e que vai investir este ano R$ 3,7 milhões nesses testes, inclusive um rápido para detecção de anticorpos. Um deles, desenvolvido pela Fiocruz, é um teste PCR com 91% de acurácia.
“O Brasil é o primeiro País do mundo a incorporar esses exames e oferecê-los gratuitamente à população”, afirmou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no lançamento dos exames. “Que nós possamos fazer o diagnóstico clínico, confirmar através dos exames e, com uma terapia adequada, fazer com que os pacientes sejam curados.”
Milton Ozório Moraes considera que a incorporação dos testes é um grande avanço. “Sou um entusiasta. Acho que é uma grande oportunidade de termos uma mudança relevante do perfil epidemiológico da doença”, disse o especialista da Fiocruz. “No início, o mais provável é observarmos um aumento no número de casos de 10% a 20% por causa do maior número de diagnósticos. Mas, depois de dois ou três anos, vamos começar a ver um declínio gradual.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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